terça-feira, 29 de março de 2011

Sementes de privação ou a destruição do jardim do paraíso

O texto abaixo transcrito é de parte de um capítulo de um livro escrito há cerca de 20 anos. De lá para cá, todos os problemas graves para que o autor alertou, pioraram, e muito. De facto, continua-se a destruir o jardim do paraíso, extinguindo, em aceleração contínua, cada vez mais espécies e variedades de vida.   
Numa altura em que é urgente e importante restabelecer a biodiversidade alimentar perdida ou em riscos de se perder definitivamente, a Comissão Europeia pretende restringir o comércio de variedades de sementes (ver em Zona Livre de OGM), passando a só poder ser comercializadas (pagando licença) as espécies e variedades que as grandes empresas abusivamente patentearam. Uma Comissão Europeia que assim age na defesa dos interesses de certas empresas contra a natureza e contra a humanidade, ou é ignorante ou é vendida. É preciso que isto se saiba! 

Ajude na luta contra a privatização das sementes! Assine e divulgue a petição lançada pela Campanha Europeia pelas Sementes Livres.

"Sementes de privação

Não há nada que nos ligue mais profundamente à Terra - aos seus rios e terrenos e às suas épocas de abundância - do que os alimentos. São eles que nos recordam diariamente a nossa ligação ao milagre da vida. Portanto, não é de admirar que a maior parte das religiões do mundo exijam a consagração dos alimentos antes de transformarem no sustento da vida.
Mas quantas pessoas sentem ainda essa ligação? A maioria de nós já não produz aquilo que come, confiando antes num enorme e complexo sistema que coloca uma surpreendente variedade de alimentos de todos os cantos do mundo nos supermercados.
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A história da agricultura está intimamente ligada à história da humanidade. Cada aumento do tamanho dos povoamento foi acompanhado de uma sofisticação do esforço cooperativo para produzir, armazenar  e distribuir quantidades de alimentos cada vez maiores.
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Contudo, o sistema global que produz as enormes colheitas hoje necessárias enfrenta uma verdadeira ameaça estratégica. Malthus preocupava-se com o abastecimento de alimentos; hoje devíamos preocuparmo-nos ainda mais com o abastecimento de sementes. Cada semente (e cada planta) transporta aquilo a que se chama idioplasma; contém não apenas genes mas todas as qualidades especiais que controlam a herança, definem o modo como os genes funcionam e fixam padrões através dos quais se combinam e expressam as suas características - nas palavras de Steve Witt, «a matéria da vida». Mas a saúde futura do abastecimento de alimentos depende de uma grande variedade deste material insubstituível e hoje arriscamo-nos a destruir o idioplasma que é essencial à viabilidade constante das colheitas. A resistência genética das colheitas à destruição maciça por doenças, pragas e alterações climáticas é crucial a qualquer abastecimento alimentar.
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Na verdade, as fontes primitivas de todas as nossas colheita principais estão a ser sistematicamente destruídas. Os agrónomos só agora estão a compreender este perigo;
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A biotecnologia está, sem dúvida, a criar novas variedades de culturas de características impressionantes, como uniformidade, alta produtividade e até resistência natural a doenças e pragas. Mas temos estado cegos a uma dura verdade: as novas variedades de culturas que criamos nos laboratórios tornam-se rapidamente vulneráveis aos seus inimigos naturais, que evoluem rapidamente, por vezes após algumas estações. Embora a sua resistência genética seja reforçada com novos genes, que se juntam às variedades comerciais de tempos a tempos, muitos dos genes próprios para reabastecer a vitalidade das culturas apenas existem na natureza primitiva.
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O que é inquietante nestas evoluções não é o envolvimento de companhias multinacionais de produtos químicos em si. Estas têm capacidade empresarial, recursos e outras capacidades que poderão ser úteis para enfrentar alguns problemas estratégicos que afectam o sistema alimentar mundiasl. Contudo, as estratégias que algumas companhias seguem neste momento reflectem o pressuposto de que somos suficientemente inteligentes para dirigir o percurso evolucionário de importantes plantas e obter benefícios a curto prazo, sem pagar um altíssimo preço a longo prazo.
Mas não somos assim tão inteligentes, nem nunca o fomos. Na realidade, a agricultura continua assombrada por acordos faustianos, feitos quando se introduziram tecnologias mais antigas, muitas das quais menos sofisticadas do que a moderna engenharia genética. Veja-se o exemplo dos pesticidas: não matam só pragas prejudiciais, também matam muitas que são benéficas, destruindo assim o padrão natural de um ecossistema e fazendo mais mal que bem. O ecologista Amory Lovins conta uma história especialmente inquietante de como se usou na Indonésia um pesticida muito forte para matar os mosquitos que espalhavam a malária; a pulverização matou também as minúsculas vespas que controlavam a população de insectos nos telhados de colmo das casas. Passado pouco tempo, os telhados ruíram. Entretanto, milhares de gatos morreram igualmente, envenenados pelo pesticida e, depois da sua morte, a população de ratazanas, por sua vez, trouxe uma epidemia de peste bubónica.
Mesmo sem efeitos colaterais catastróficos, as pragas prejudiciais desenvolvem frequentemente imunidades com muita rapidez, o que encoraja os agricultores a usar doses maiores de pesticida. E os escoamentos agrícolas levam os resíduos para os reservatórios de água subterrânea e para os ribeiros, de onde passam os pássaros e peixes. Estes perigos não são novos: Silent Spring, o livro de Rachel Carson que marcou uma época, avisava eloquentemente a América e o mundo em 1962 dos perigos que os pássaros migratórios e outros elementos do ambiente natural corriam devido aos escoamentos agrícolas.
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Os métodos de cultivo modernos não são, porém, a única fonte de abuso do sistema global. O abuso das pastagens é uma importante causa de desertificação, assim como a recolha de lenha para cozinhar os alimentos por parte de uma população em crescimento. A manipulação genética de animais, que ainda não está tão desenvolvida como nas plantas, começa, no entanto, a provocar preocupações semelhantes, bem assim como o uso de hormonas artificiais no gado.
Particularmente alarmante é o número de provas de que estamos a esgotar muitos dos pesqueiros mais importantes do mundo: desde 1950 a quantidade total de pescado a nível mundial aumentou 500% e parte-se do princípio de que é mais elevado do que o ritmo de reposição, na maior parte das áreas. E está a desaparecer completamente um número cada vez maior de espécies valiosas do ponto de vista alimentar. O uso de redes de arrasto de malha fina com mais de cinquenta quilómetros de comprimento, que limpam os oceanos, provocou recentemente -  e com toda a justeza - grandes protestos públicos; mesmo sem redes de arrasto, as frotas pesqueiras estão a fazer um assalto geral à produtividade dos oceanos em todo o mundo.
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Mas a ameaça estratégica isolada mais séria ao sistema alimentar mundial é a da erosão genética: a perda de idioplasma e vulnerabilidade cada vez maior das culturas alimentares em relação aos seus inimigos naturais. Ironicamente, esta perda de resistência e flexibilidade genética ocorre precisamente no momento em que os que acreditam que podemos adaptarmo-nos ao aquecimento global também defendem que podemos conceber novas plantas que se desenvolverão nas imprevisíveis condições que estamos a criar. Mas os cientistas nunca criaram um novo gene. Limitam-se a recombinar genes que se encontram na natureza e é este fornecimento de genes que está hoje tão ameaçado.

A nossa incapacidade de fornecer protecção adequada à reserva alimentar do mundo é, na minha opinião, simplesmente mais uma manifestação do mesmo erro filosófico que levou à crise ambiental global no seu todo: partimos do princípio de que as nossas vidas não necessitam de uma ligação real ao mundo natural, de que o nosso espírito está separado do corpo, e de que, quais intelectos sem corpo, podemos manipular o mundo da forma que quisermos. Exactamente porque não sentimos qualquer ligação ao mundo físico, minimizamos as consequências das nossas acções. E porque esta ligação parece abstracta, só com muita lentidão compreendemos o que significa destruir as partes do ambiente que são vitais à nossa sobrevivência. Na verdade, estamos a destruir o Jardim do Paraíso."

Extraído do capítulo "Sementes de Privação" do livro "A Terra à procura de Equilíbrio, ecologia e espírito humano" , Al Gore, 1992 ("Earth in Balance"), Editorial Presença, 1993, tradução de Isabel Nunes
 (Nota: o negrito é meu; as imagens foram obtidas na internet)

3 comentários:

  1. Infelizmente a Comissão Europeia não é ignorante... é vendida!
    Patentear sementes tem tanto de ridículo como de ultrajante.
    E, é sem dúvida, um caminho muito perigoso.

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  2. É assustador... agora juntemos a contaminação por plutónio no Japão... isto está a ir muito depressa.
    Por falar nisso... que anda o Al Gore a fazer?!
    Isto só tinha volta a dar se todas as populações aderissem ao movimento ZEITGEIST, de uma só vez... e mesmo assim... :(

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  3. Olá! Boa tarde!

    Gostaria de saber para qual e-mail eu posso enviar sugestões de pauta para vocês. Trabalho fazendo Assessoria de Imprensa nessa área e seria ótimo ter vocês em meu cadastro de veículos de comunicação ligados a Sustentabilidade.

    Favor responder através do email: mvanjosbh@gmail.com

    Aguardo retorno. Obrigado!

    Marcos dos Anjos
    Assessor de Imprensa

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